Mirtes Santa Rosa
Há alguns anos, vivi uma grande reviravolta em minha vida. Meu pai que, dentro de meu núcleo familiar, era a pessoa que eu mais amava, sofreu um (AVC) acidente vascular cerebral isquêmico. Em meio a tantas lembranças embaçadas e mal processadas daquele dia, o medo da morte e de um fim “bateu” em minha vida. Eu já me entendia espírita, mas ainda com muitas amarras associadas à minha educação católica, que me fazia questionar por que uma das pessoas mais bondosas e lindas que eu conhecia estava passando por aquele sofrimento. Hoje, percebo que tudo, naquele dia, me moldou para quem sou hoje. Meu pai me disse, em sua forma tranquila e serena de ser, que era importante ser forte e olhar para além das aparências do Eu, que sempre existiria uma continuidade do que somos naquela nova experiência física que ele passaria a viver.
Naquele dia, no começo da manhã, eu tinha me desentendido com meu irmão do meio e, como sempre, meu pai foi o apaziguador da situação. Desceu comigo o elevador, para levar as marmitas que minha mãe vendia e que eu ia entregar antes de ir para meu trabalho. Ao me acompanhar até o carro, ele me disse: “– Preciso que você se acalme. Tenho dez irmãos e nunca brigamos como você e seu irmão brigam. Na minha falta e de sua mãe, você precisará ter equilíbrio para lidar com seus irmãos.” Escutei e nada disse, pois ele sempre foi capaz de me desarmar. Foi a última vez que ouvi sua voz, pois, mais tarde, recebi a ligação da vizinha que falava que meu pai estava no posto de saúde porque tinha passado mal e ninguém sabia o que realmente havia acontecido.
Esse acontecimento, chamado AVC, mudou tudo. Meu pai deixou de ser quem eu conhecia até aquele momento, tornando-se um pai com limitações físicas, mas o amor e o bem-querer para com sua família seguiam presentes em seu olhar, e sua manteve ativa.
Desde aquele dia, nunca o vi desesperado ou mesmo sendo ranzinza ou mal-humorado. Seu sorriso fácil e irônico, típico de pessoas que escutam mais do que falam, continuava lá, e, em sua nova condição física, sempre existiu a certeza de que entender a sua continuidade era o caminho. Esse personagem que consegue emergir de seu espírito, sua razão de ser, nos ensina, até hoje, que a continuidade é eterna, que nossa essência transcende limitações físicas que, no caso dele, são motoras e fonoaudiológicas, sequelas do AVC ocorrido. Não escutei mais a voz de meu pai, não da forma que eu conhecia até aquele dia; aprendi a escutar sua voz nessa continuidade do Eu. Este personagem consegue ser Espírito no sentido mais amplo que hoje aprendo e reflito a partir dos estudos na Universidade Livre do Espírito (ULE). Ele existe na essência de se saber dono de si, consciente de que existe um poder pessoal e intransferível que é a liberdade de ser e viver como Espírito. Meu pai nunca foi religioso, sempre tinha uma piada sobre padres e dizia, quando eu era criança, que nunca ficaria em uma cama, que preferia a morte. Mas o AVC aconteceu e ele foi testado: ele não escolheu morrer, ao contrário, preferiu vivenciar sua continuidade, na certeza da coragem de viver, no nascer dessa consciência de viver como Espírito. Existe, diariamente, em seu olhar e nos sorrisos, uma fala que faz todo sentido, exalando amor para seus filhos, esposa e netos. Há, nele, uma autodeterminação para ser o seu melhor Eu.
E, Personagem, que ainda luta de forma diária e herculana, tentando entender e me libertar do que vejo no corpo fisico, tentando diariamente construir uma autodeterminação para não ser como Narciso que “acha feio o que não é espelho”, sinto o privilégio e o merecimento de ser sua filha, de sentir esse amor que impulsiona e diz: “Segue, porque não existe nada que possa parar você, Espírito, que se sabe e se aceita contínuo e eterno”.
A nossa mente é nossa continuidade e é a partir dela que nos libertamos e continuamos. Toda experiência é válida para se fazer continuar eterno