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Dicas da Revista

Sede de Ser

Heitor Caldas 

  Desde cedo, adoto uma postura reflexiva a respeito de determinados ditames religiosos que arraigam de forma silenciosa, e às vezes até escancarada, a sociedade. O certo e o errado. O bem e o mal. A perfeição e a salvação.

Muitos referenciais externos são forjados por imperativos salvacionistas e reduzem a realidade e o poder do indivíduo de manifestação quando adotados.

Geni Nuñez (2024) escreveu, em claro diálogo com Cecilia Meirelles, que “entre isso e aquilo, há milhões de outros demonstrativos. Tudo tem mesmo só dois lados?”

Na peça teatral Um Julgamento – Depois do Inimigo do Povo (2025), o personagem central é acusado pelo próprio irmão. Ao final, o ator, destituído do papel, reflete sobre o que seria daquela relação após o julgamento, pois nunca havia visto ex-irmãos.

Tudo isso me remete ao sentimento de que somos uma totalidade vivendo relações humanas com presença. As experiências afetivas são o que importa para além das narrativas, na grande maioria das vezes facilmente polarizadas em uma dialética de confronto sem fim.

E em tempos líquidos, onde a liberdade e a autonomia vêm ganhando cada vez mais relevância, ter essa consciência virou imperativo categórico para não se perder diante de tanta informação e, ao mesmo tempo, para se viver na coletividade com os próprios referenciais e de forma ética.

Atualmente, o algoritmo nos dá exatamente aquilo que manifestamos, em uma clara alusão ao poder do campo pessoal na produção da própria realidade. Cedo ou tarde, o inconsciente se realiza, e atualmente de forma ainda mais clara e “virtualmente” visível através de interesses, hates, dislikes e cancelamentos.

Tudo está se tornando mais lúcido e claro: as possibilidades de manifestação maiores e a impermanência da vida mais nítida pela flexibilidade – liquidez – da realidade.

Isso vai de encontro à ideia de perfeição. Como estabelecer um fim rígido para uma realidade e uma vida tão impermanentes e tão pulsantes? A dança, o movimento, a busca incessante por ser quem se é ganharam contornos mais factíveis do que o “sede perfeitos como o vosso pai celestial o é”. Afinal, se somos imagem e semelhança, nada mais gratificante do que um Deus que dança e que vibra com o que cria.

Parafraseando Fernando Pessoa (2015), em fragmentos de uma autobiografia, “Primeiro, entretiveram-me as especulações metafísicas, as ideias científicas depois. Atraíram-me as sociológicas. Mas em nenhum destes estádios da minha busca da verdade encontrei segurança e alívio”.

Aparentemente, a segurança e o alívio estão naquilo que sentimos e elaboramos, não em ideias que se fragmentam – e fragmentam – a realidade. Silenciando as vozes externas que reverberam, passamos a observar o que produzimos e temos a oportunidade de escolher os próximos passos com base em valores internos a partir daquilo que nos dá potência, produzindo vida e não morte.

O objetivo – a recompensa – deixa de ser o que querem e o que nos dão como verdade, mas o resultado do processo contínuo que somos, sempre em busca do ouro. Por isso, que não seja um ouro de tolo. Já que não existe fim, o importante é a jornada que estamos forjando.

É preciso ter sede de ser, como uma necessidade básica do Espírito, que não tem outro objetivo senão o de realizar-se continuamente através do tempo e das experiências afetivas que vem construindo em sua jornada como um grande viajante.

Assim nos entregamos ao nosso processo humano de transmutação. Vivendo intensamente a nossa melodia… Dançando a nossa própria dança.

Referências:

JATAHY, Christiane (dir.). Um julgamento, depois do inimigo do povo. Peça teatral de Christiane Jatahy, Lucas Paraizo e Wagner Moura. Salvador: Axis Produções Artísticas, 2025.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Rio de Janeiro-RJ. _____ (nome da editora), 2020. p.348.

NOVAES, Adenáuer. A autodeterminação do espírito. A soberania do ser em si e seu Campo Pessoal. Salvador: Fundação Lar Harmonia, 2025. p.308.

_______. A continuidade do eu. Salvador: Fundação Lar Harmonia, 2024, 359 p.

_______. O voo do espírito. Salvador: Fundação Lar Harmonia, 2018. p.268.

NUÑEZ, Geni. Felizes por enquanto: escritos sobre outros mundos possíveis. São Paulo: Planeta, 2024. p.159.

PESSOA, Fernando. Livro(s) do desassossego. Edição de Teresa Rita de Lopes. São Paulo: Global, 2015. p.472.

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