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Amar aos inimigos é amar-se

Autora: Lidianne Cerqueira

Disse Jesus: “Amai os vossos inimigos; fazei o bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos perseguem e caluniam” (Mateus, 5:43-44)

Essa passagem ficou na minha cabeça durante essa semana. Perguntei a meus amigos: “você tem inimigos?” e adicionei “se os tem, consegue amá-los como está no evangelho?”.

As respostas foram variadas, muitos não consideram que têm inimigos, mas talvez pessoas difíceis em suas vidas. Por unanimidade, disseram que não se pode ter o mesmo sentimento de amor que se tem com um irmão em relação a um inimigo. Todos citaram a importância do perdão e que se o ofendido não guardar rancor, não pagar o mal com o mal, desejar o bem e orar pelo ofensor, a missão estaria cumprida. Será que é só isso mesmo?

Vivemos numa sociedade polarizada. Há verdadeiras guerrilhas virtuais, debates políticos em que partidários de A querem aniquilar os partidários de B. São os gladiadores da era digital. Há conservadores x progressistas, veganos x carnívoros, direita x esquerda. Essas polarizações nas redes sociais fazem as pessoas regredirem a um estado de falta de civilidade e projeções de aspectos sombrios do ser. Quem nunca bloqueou alguém na internet que atire a primeira pedra!

Lembrei de um fato ocorrido há alguns anos. Era um domingo ensolarado e minha mente estava turvada com nuvens e trovões: “Como era possível que aquele, que se dizia meu amigo, pudesse fazer o que fez comigo? Então, é fato! Não somos amigos! Vou terminar essa amizade e nunca mais quero falar com ele! Se não somos amigos, então ele é meu INIMIGO!”. Uma profusão de pensamentos regados a raiva, mágoa, tristeza e outras emoções de mesmo calibre. Era palpável a dor. “Uma punhalada daquelas! Nas costas!”

Decido ir à praia meditar, em algum local isolado, onde eu não seria incomodada. Ao colocar o pé na areia, senti como se chegasse ao Portal do Inferno de Dante: areia quente, clima mormacento, latas de cerveja e bandejas de acarajé jogadas num canto, som alto de um lado, som destoante do outro, músicas brigando entre si, pessoas gritando e crianças chorando.

Caminho e paro num local, relativamente distante da cena inicial. Logo, vem um vendedor ambulante, chato, insistente. “Não! Não quero, nada!”. Em seguida outro grita “olha o bronze!”. Minha irritação crescia a cada grito. Uma vendedora bate com o cardápio na minha cabeça. Meu mau humor subia na estratosfera. “Não tenho dinheiro. Não quero olhar nada. Saia!” Os pensamentos de tristeza e mágoa se juntam à raiva provocada pelo séquito de soldados do comércio popular que me tiravam do sério.

Nesse instante, sinto pingos: “É CHUVA! Não é possível! Que azar! Por que inventei de vir à praia?! Tudo errado! Nada dá certo pra mim!”. Ando apressada e a cada passada, a chuva apertava, cada vez mais forte. Chuva de açoite, violenta, no rosto, nas costas, lembro da “facada”, sinto dor e mais raiva. Começo a correr, tentando fugir da chuva e ao mesmo tempo escapar dos pensamentos.

Então, um vendedor na barraca de praia me chama:

– Moça, olha o guarda-sol aqui, venha!

O velhinho puxa uma cadeira, ajeita um guarda-sol um pouco enferrujado, e me sorri. Eu respondo, seca:

– Não tenho dinheiro.

– Nada não, moça, venha, sente aqui.

– Obrigada, mas não precisa, já me molhei mesmo.

-Verdade! Já já se seca no sol de novo… – Ele ri, desdentado.

E eu, de pé ainda:

– Nada, vou embora. Nem deveria ter vindo!

E ele responde, apontando para o oceano:

– Vá não que o sol já volta, moça! Olha lá que espetáculo! É a chuva caindo no mar! É lindo demais! Nesses momentos eu penso, como sou abençoado! Já imaginou quantas pessoas que estão agora, nesse instante, numa cama de hospital, num quarto sem janela e que não podem ver essa maravilha da natureza… Eu acordei 4 horas da manhã, sem saber se ia dar praia. Mas eu vim e tô feliz em estar aqui…

Naquele momento, me sentei, nocauteada pelas palavras do homem. O tiozinho continuava a filosofar. A chuva amainou e logo cessou. Olhei para o horizonte, havia um resquício de arco-íris difuso. Uma sensação de paz e completude me invadiu. O velhinho falou, sorrindo:

– Viu aí, moça? Eu disse que ia passar! Agora você pode curtir sua praia.

Qual a relação dessa história com o “amai os vossos inimigos”? O caso resume bem a minha imaturidade em lidar com as emoções geradas pela atitude de meu amigo, logo considerando-o um inimigo. Da mesma forma, nas guerrilhas digitais, a puerilidade e a ignorância imperam. Nossa atitude mental é, na realidade, um de nossos maiores inimigos.

Não adianta viver lutando contra adversários imaginários, como Don Quixote lutava contra os moinhos. Enquanto isso, permanecemos dominados pela alquimia psíquica que junta pensamentos, emoções, desejos, conteúdos conscientes e inconscientes. Um fator externo não pode e não deve nos desorganizar internamente. Ficamos imersos em microproblemas de nosso universo particular, rodando muitas vezes em círculos, e deixamos de perceber o macrocosmos.

Inimigos ou pessoas difíceis são como faróis. Indicam um caminho para que você modifique alguma coisa em si mesmo, iluminam algum aspecto sombrio seu para que, por meio do conflito, você escute suas emoções, reveja mentalmente e analise a sua reação àquela atitude daquela pessoa. É preciso parar, refletir, reconhecer as emoções envolvidas, acolher os sentimentos, assumir que você teve aquele pensamento ou atitude, se perdoar, perdoar o agressor. Fazer perguntas a si mesmo: o que essa situação quer me dizer? De onde veio essa emoção? Compartilhar os achados com amigos e pessoas de confiança que possam ajudar a lhe dar uma nova perspectiva sobre o problema, e até mesmo auxiliar na sua mudança vibracional.

Desta forma, amar os nossos inimigos é ter carinho e atenção com nossas dificuldades, fazer o bem é trazer para a consciência os conteúdos que ainda estão inconscientes. Manter o equilíbrio interno nas situações adversas e entender que quanto mais nos responsabilizamos por nossos próprios pensamentos e emoções, melhor podemos nos autotransformar, compreender os limites do outro e ser agente da mudança no mundo.

E você? Quais são seus inimigos?

Um comentário em “Amar aos inimigos é amar-se

  1. Texto maravilhoso!!
    É exatamente isso… nossa imaturidade espiritual nos conduzindo ao poço escuro de nossa inconsciência. Amar aos inimigos é na verdade, apenas não julgar e acolher o aprendizado. Difícil? Muito! Mas o exercício é libertador!

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